
Depois de muitas tentativas infrutíferas, a pesquisa sobre as fazendas Bocaina e São Manoel da Bocaina trouxe à memória um conceito mencionado pelo historiador Carlo Ginzburg [1] ao citar a “fábula ou conto oriental de três irmãos que, interpretando uma série de indícios, conseguem descrever o aspecto de um animal que nunca viram”. O conto é conhecido pelo título “Peregrinação dos três jovens filhos do rei de Serendip” e fez tanto sucesso que o inglês Horace Walpole cunhou o neologismo “serendipity” para designar as descobertas imprevistas.
Em história, serendipidade corresponde ao paradigma indiciário. Ao interpretar indícios, é possível suprir lacunas através de uma interpretação criteriosa, conjectural. O processo “leva do conhecido ao desconhecido” nas palavras de José Carlos Reis[2] interpretando Ginzburg.
O ofício do pesquisador envolve a coleta de indícios que não necessariamente são compreendidos de imediato. Muitas vezes esses fragmentos ficam guardados até servirem a outro projeto, confirmando o paradigma indiciário.
Foi o que aconteceu no estudo comparativo entre o processo de divisão das terras que compuseram a fazenda de São Manoel da Bocaina, de Manoel Ferreira Brito, com as partilhas de bens de sucessores do primeiro proprietário e o inventário do formador da fazenda Bocaina, José Ignacio de Souza.
Inicialmente acreditava-se que teria existido apenas uma fazenda denominada pelo topônimo bocaina. Como se sabe, bocaina é depressão numa serra, servindo de passagem entre duas partes elevadas, ou passagens estreitas entre duas ilhas ou entre uma ilha e o continente. Uma das conhecidas bocainas, nas divisas em São Paulo e Rio de Janeiro, deu nome à Serra da Bocaina mencionada por Saint-Hilaire[3]. É a serra que batizou o município de Bocaina de Minas onde nasceu Manoel Ferreira Brito quando o lugar ainda era um pequeno arraial pertencente a Aiuruoca que, por sua vez, é terra de origem de várias famílias que migraram para Leopoldina. Daí ser lícito imaginar a existência inicial de apenas uma fazenda do nome e que essa tenha sido a de Manoel Ferreira Brito que a formou ao chegar ao Feijão Cru.
Até então tinha-se como certo que os dois nomes, Fazenda de São Manoel da Bocaina e Fazenda Bocaina, se referiam a uma só propriedade. No entanto, a partir dos estudos comparativos acima citados, observou-se que tal interpretação não se sustenta. As primeiras referências a tais propriedades vieram de registros dos confrontantes, no caso da São Manoel da Bocaina e, em transações de compra e venda de bens de raiz constantes dos primeiros livros do Cartório de Notas de Conceição da Boa Vista envolvendo os proprietários das duas Bocainas e as propriedades de Antonio Luiz e de Felicíssimo de Moraes.
Para a fazenda São Manoel da Bocaina partiu-se de referências indiretas que foram confrontadas com outras fontes, como compra e venda de bens de raiz envolvendo descendentes do primeiro proprietário, além dos vínculos que se formaram com descendentes das fazendas confrontantes, testamentos e inventários dos nomes envolvidos. Chamou a atenção o fato de que, diferentemente da maior parte das fazendas formadas no Feijão Cru, as duas propriedades com o nome de Bocaina não foram registradas em 1856, o que não chegou a ser tratado como problema, visto que as propriedades de Antonio Luiz de Moraes e Felicíssimo Vital de Moraes também não o foram.
Conforme o já citado Reis[4], “o trabalho do historiador se aproxima do trabalho do policial e do juiz. A necessidade da prova não é uma ilusão positivista. O processamento da documentação é capaz de distinguir o falso.” E assim trabalhando, os autores desta série chegaram ao que se verá a respeito na próxima edição. Antes, porém é necessário situar a região aqui mencionada.

Trata-se da divisa entre o distrito de Ribeiro Junqueira e o município de Recreio, a partir da margem do Rio Pomba até o local onde a estrada de ferro cruza o ponto hoje denominado Alto da Bocaina como se verifica na Carta Topográfica do Município de Leopoldina produzida em 1981.
Até a próxima edição!
Luja Machado e Nilza Cantoni – Membros da ALLA
Publicado na edição 433 no jornal Leopoldinense, junho de 2022
Fontes consultadas:
[1] GINSBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.168 [2] REIS, José Carlos. Teoria & História: tempo histórico história do pensamento histórico ocidental e pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2012. p.101 [3] SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974 [4] REIS, José Carlos. Obra citada,2012. p.100-101