Pioneiros de Conceição da Boa Vista

Quando nos dedicamos ao estudo das famílias pioneiras de nossa região, corremos o risco de buscar um modelo único, pessoas que se assemelhem por um conjunto de elementos que estariam presentes na vida da comunidade como um todo. Mas tal simplificação é impossível. O ser humano é sempre único em suas características pessoais e acreditamos que na multiplicidade está a riqueza maior.Por esta razão, estabelecemos um desafio para nossos estudos: investigar o que for possível sobre a trajetória das pessoas que, ao se transferirem para a nossa região, construíram uma identidade coletiva especial, legando-nos um passado específico, só nosso, que se comunica com a história de outros lugares e ao mesmo tempo deles nos distingue.

Não temos a pretensão de construir um trabalho de grandeza inquestionável. Pelo contrário, queremos apenas reunir, aqui neste blog, o que nos foi possível apurar até então. Através da vida de nossos antepassados, buscamos vislumbrar um pouco da generalidade e da singularidade, das demandas e contingências que os afetaram e que, por isto mesmo, são as colunas de sustentação da nossa história.

Muitos são os nomes de pioneiros esquecidos. A distância no tempo apagou memórias familiares. Nos tempos atuais já não cultivamos o agradável “proseado” com nossos parentes mais velhos. E perdemos, assim, a oportunidade de ouvir os “causos” deliciosos que os narradores mais antigos mantinham vivos pela oralidade.

Pesquisando a documentação ainda existente, descobrimos nomes de pessoas que desbravaram a serra dos Monos, abriram áreas de cultivo nas nascentes de nossos ribeirões, decidiram a rota dos caminhos que foram abertos e mais tarde, quando as bases da povoação já estavam bem definidas, provavelmente afastaram-se da vida pública e seus nomes caíram no esquecimento.

Como terá sido, por exemplo, a família que recebeu o número 71 no Mapa de Habitantes de 1838? Sabemos apenas que era chefiada por Ana Joaquina, mulher solteira, de 30 anos, que vivia com os filhos Francisca, Manoel, Lucinda e Laura.O pai das crianças seria um tropeiro que passava tanto tempo longe de casa a ponto de não ser computado entre os moradores locais? Ou seriam nativos? Mas como, se a história nos diz que os índios viviam agrupados, em formações familiares diferentes das famílias nucleares que habitualmente conhecemos?

E a família número 75, chefiada por Antonio Valentim, casado, 32 anos? O Mapa de Habitantes informa que ele era casado com Tereza Maria de 20 anos em 1838. Com o casal vivia o filho João, de 1 ano. A mesma casa abrigava também um provável irmão de Antonio chamado Fortunato Valentim, de 26 anos, casado com Luzia Maria, 19 anos. Todos eram lavradores e analfabetos.

Estes são apenas dois exemplos de famílias que sabemos terem habitado o Curato de Nossa Senhora da Conceição da Boa Vista nos pródomos da nossa história. Embora nada mais saibamos sobre eles, decidimos registrar-lhes os nomes como forma de agradecer-lhes por aqui estarem quando o povoamento começou.

O distrito de Recreio, sede do município

As divisas estabelecidas na criação do distrito de Recreio dentro do município de Leopoldina começaram a sofrer alterações naquele mesmo ano de 1890. Isto porque estava em discussão a criação de dois novos distritos: Santa Isabel e São Joaquim. De fato, cinco meses depois Conceição da Boa Vista perdeu mais uma grande parte de seu território.

Se comparamos as discussões que resultaram dos Decretos nº 123 de 27 de junho de 1890 e nº 241 de 21 de novembro do mesmo ano, compreenderemos os motivos que geraram as revisões destes instrumentos legais. Muitas propriedades ainda estavam em processo de “retombo”, ou seja, não tinham sido devidamente medidas e registradas segundo a legislação em vigor. Portanto, era preciso refazer as linhas demarcatórias ou seria inviável o recolhimento de impostos. E não foram só os limites de Recreio a serem modificados nos anos seguintes. Conforme já comentamos, em 1891 foram alteradas as divisas do distrito de Itapiruçu, na época já transferido para Palma. Em todos os casos analisados, pode-se constatar que as linhas originais dividiriam diversas fazendas entre dois distritos.

Como alguns processos de medição se prolongaram por muitos anos, Recreio só teve seus limites definitivamente estabelecidos em 1918. Entre outros entraves, observamos que o processo de inventário de Ignacio Ferreira Brito interferiu de forma significativa, já que parte de sua herança marcaria a divisa sudoeste com o distrito de Conceição da Boa Vista.

Por tudo isso, apresentamos o desenho abaixo com um alerta importante: trata-se apenas de um esboço aproximado para orientar nossos estudos.

O número 1 indica o Alto da Bocaina, acidente geográfico que servira, sessenta anos antes, como divisa entre as fazendas dos pioneiros. O número 2 marca a sede da Fazenda São Manoel da Bocaina na época da criação do distrito de Recreio. Recordemos, entretanto, que esta propriedade já se encontrava dividida entre vários herdeiros mas sem medição concluída, não sendo possível defini-la com precisão.

O número 3 indica a região da Fazenda Laranjeiras, de cujas terras foram feitos os aforamentos que deram origem a Recreio. Pelos mesmos motivos já expostos, deixamos de citar os nomes de diversas propriedades localizadas em suas proximidades e que só tiveram concluída a medição alguns anos mais tarde.

Durante a leitura das várias fontes que utilizamos em nossos estudos, não raras vezes encontramos referência a um “pouso de tropeiros” nas “terras de Dona Mariana”. Sabemos que Mariana Teresa Duarte, viúva de Antônio José Dutra, recolheu impostos sobre a Fazenda Recreio em 1858. Pelos limites informados no Registro de Terras de 1856, a propriedade estava loalizada nas nascentes do Ribeirão dos Monos, a oeste da atual sede do município de Recreio. Entretanto, com as múltiplas divisões dos seus mais de 400 alqueires ao longo da segunda metade do século XIX, é provável que a sede ainda existisse por volta de 1890, justificando a referência ao “pouso da Dona Mariana” que marcava os limites entre Santa Isabel, Campo Limpo e Recreio.

Uso e Propriedade do Solo

Antes de prosseguirmos comentando os desmembramentos do território de Conceição da Boa Vista, necessário se faz recuperar informes sobre a ocupação e formação das fazendas. Conforme nos ensina Lígia Osório Silva, no livro Terras Devolutas e Latifúndio – Efeitos da Lei de 1850, “as relações entre os proprietários de terras e o Estado constituem um aspecto fundamental para a compreensão da dinâmica da sociedade brasileira” (1996, p. 13). Contudo, apesar de existirem muitos estudos sobre o assunto, ainda podemos encontrar publicações que repetem à exaustão algumas lendas sobre a posse da terra. Para não nos estendermos em demasia, vamos nos restringir ao que ocorreu em Conceição da Boa Vista, ou seja, ao século XIX.

Segundo apuramos, depois que Pedro Afonso Galvão de São Martinho foi encarregado das diligências de 1784 e 1786, que oficialmente objetivavam combater o contrabando de ouro no Descoberto do Macuco, os caminhos abertos por suas tropas tiveram intensa utilização por tropeiros e viajantes. Nos primeiros anos do século XIX, as margens destes caminhos começaram a ser doadas emsesmarias.Entre 1813 e 1821, identificamos 46 sesmarias (VEJA) localizadas nos atuais municípios de Além Paraíba, Argirita, Aventureiro, Leopoldina e Pirapetinga. Destas, 14 foram concedidas aos Monteiro de Barros, sendo importante lembrar que uma filha de Pedro Afonso Galvão de São Martinho casou-se com Manoel José Monteiro de Barros (filho) e deste casal descendem os Galvão de São Martinho que viveram em território de Conceição da Boa Vista.

Dois sesmeiros, os irmãos Fernando Afonso e Jerônimo Pinheiro Correia de Lacerda, não tomaram posse das terras que receberam em 1817. Optaram por delegar a seus sobrinhos Francisco e Romão Pinheiro Correia de Lacerda, a incumbência de cumprir o que determinavam as cartas de doação: demarcar, povoar e cultivar as terras recebidas gratuitamente.Por uma opção interpretativa de autores do século passado, passou-se a considerar que Francisco Pinheiro Correia de Lacerda foi o fundador de Leopoldina. No nosso entendimento, porém, este personagem apenas tratou de vender as duas sesmarias e tomar posse de outras terras, vendendo-as também. Ou seja: transferiu aos compradores a obrigação de povoar e cultivar.

Os pioneiros de Conceição da Boa Vista não foram posseiros. Muitos compraram terras que Francisco Pinheiro Correia de Lacerda ocupou, sem contudo tê-las requerido como sesmarias. Sob certo ponto de vista, entende-se que seriam ocupações ilegais. Algumas exceções: os Monteiro de Barros ocuparam legitimamente as terras que ganharam; José Ferreira Brito e um seu irmão teriam comprado a sesmaria de um outro beneficiado; Bernardo José Gonçalves Montes ampliou seu domínio comprando parte de uma outra sesmaria concedida nos termos da lei.

Informa-nos Lígia Osório da Silva, citando Ulisses Lins (p.45), que a “medição e demarcação eram rudimentares”, sendo feitas da seguinte maneira: “O medidor enchia o cachimbo, acendia-o e montava o cavalo, deixando que o animal marchasse a passo. Quando o cachimbo apagava, acabado o fumo, marcava uma légua”. Portanto, não devemos considerar rigorosamente as medidas informadas nas cartas de sesmaria. Somente ao final do século XIX começaram a aparecer, em nossa região, demarcadores que usavam métodos mais adequados.

Até o advento da Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850, a propriedade da terra tinha um sentido provisório. Com este normativo pretendeu-se revalidar as concessões de sesmarias, desde que as terras estivessem sendo cultivadas. Mas a regulamentação só veio com o Decreto nº 1318 de 30 de janeiro de 1854, criando-se os mecanismos necessários à execução da Lei. Entre eles, a Repartição Geral das Terras Públicas, através de repartições criadas nas províncias, nomeou delegados e oficiais para procederem ao registro das terras. Assim é que vamos encontrar no Registro de Terras de Leopoldina, realizado entre o final de 1855 e meados de 1856, os ocupantes declarando suas terras, o que os transformou, daí em diante, em legítimos proprietários. No mesmo período o procedimento foi levado a efeito nas demais paróquias da nossa região, gerando os documentos que temos consultado e que se encontram no Arquivo Público Mineiro.

Esperamos ter deixado claro que não há como garantir a exatidão das medidas informadas pelos proprietários em 1856. Observamos que a provável extensão territorial do Curato de Conceição da Boa Vista, assim como de Leopoldina e outras localidades consultadas, era bem maior do que o total dos Registros existentes. Por outro lado, a falta de instrumentos adequados para a medição gerou números a serem vistos com muito cuidado. Nossa hipótese é de que havia ainda terra desocupada mas os proprietários evitaram que isto fosse percebido, não declarando corretamente todos os seus vizinhos. Dessa forma puderem ampliar suas posses ocupando áreas que, do contrário, seriam consideradas terras devolutas.

Sob este aspecto, há um documento que nos faz refletir sobre os problemas que vieram em seguida. Para a Arrecadação Tributária de 1858, parece-nos que foram consideradas todas as terras, e não só aquelas que constaram da declaração de 1856. Como resultado, muitos proprietários buscaram desonerar-se do imposto cobrado, alegando que suas fazendas estavam abaixo do limite de área sujeito a tributação.

Ao analisarmos os registros de compra e venda de bens de raiz, entre 1864 e 1884, concluímos que as unidades de medida utilizadas obedeciam à seguinte equivalência: 1 sesmaria = 225 alqueires ou 10,89 km2Considerando-se a área de Recreio atualmente, teríamos aqui cerca de 22 sesmarias.Todavia, embora o território de Conceição da Boa Vista fosse aproximadamente o dobro do atual município de Recreio, encontramos apenas 41 registros, totalizando o equivalente a 19 sesmarias.

Em nosso próximos comentários voltaremos a tratar dos desmembramentos que reduziram o Curato de Nossa Senhora da Conceição da Boa Vista ao pequeno distrito hoje pertencente a Recreio.

Cachoeira dos Monos e os Tropeiros

Além de ser uma das belezas naturais de Recreio, a Cachoeira dos Monos representa um marco histórico para a cidade. Seu nome refere-se ao ribeirão dos Monos, de cujas águas é formada, e à serra de mesmo nome que abriga as nascentes dos tributários do ribeirão.

A primeira referência encontrada sobre a serra dos Monos vem da Carta da Província de Minas Gerais, elaborada pelo geógrafo Friedrich Wagner em trabalho conjunto com o engenheiro civil Heinrich Wilhelm Ferdinand Halfeld. Entre 1836 e 1855 os dois autores coligiram todas as informações possíveis, seja em material já publicado ou anotações de expedições próprias pelas diferentes regiões de Minas. Lembrando que Leopoldina, nesta época, limitava-se a leste com São Fidélis (RJ), observa-se na referida Carta que a serra dos Monos localiza-se na divisa entre São Fidélis e Leopoldina, estendendo-se pela margem esquerda do Pirapetinga desde as proximidades da nascente do Feijão Cru até o ponto em que o Pirapetinga muda seu curso para o sul em direção ao rio Paraíba do Sul.

Sabemos que o rio Paraíba (do Sul) já era bem conhecido desde o século XVIII, conforme pode ser observado em diversos documentos provinciais. Entretanto, foi somente no final daquele século que o presidente do Conselho de Minas Gerais ordenou que fossem explorados dois de seus afluentes próximos da divisa com o Rio de Janeiro: o Pomba e o Muriaé. Informa-nos Raimundo José da Cunha Matos, em Corografia Histórica da Província de Minas Gerais, que a partir daí foram colhidas notícias circunstanciadas destes rios. Portanto, considerando que a serra dos Monos faz parte da bacia do rio Pomba no local referido, naturalmente concluímos que ela já era conhecida quando chegaram os pioneiros.

Não sabemos quem batizou a serra e o rio com este nome. Imagina-se que tenha sido uma referência aos primatas ali encontrados.Sabe-se que a espécie Muriqui, ou Mono-Carvoeiro, era endêmica na região sudeste do Brasil. Em antigos livros de Corografia, observamos que estes primatas são referidos apenas por Mono.

Prosseguindo com nossa hipótese, o ribeirão e a serra teriam recebido tropas que se deslocavam entre São Fidélis e os Sertões do Leste, muito tempo antes do período fixado para o nascimento dos povoados da nossa região. Sabe-se que os tropeiros, comerciantes da época, de tudo davam notícia aos habitantes dos locais por onde passavam. Sabe-se também que, entre os pioneiros de Leopoldina, havia proprietários de tropas. Portanto, acreditamos serem plausíveis as notícias sobre a existência de um “recreio de tropeiros” nas proximidades da Cachoeira dos Monos já que, segundo José Alípio Goulart em Tropas e Tropeiros na Formação do Brasil, era comum que eles “batessem estaca” num ponto qualquer quando não fosse possível atingir o povoado mais próximo em horário compatível.

Ainda não encontramos o termo “recreio” nas obras que abordam o assunto. Entretanto, o uso pode ter sido estabelecido e não registrado por cronistas da época. De todo modo, entendendo-a por “intervalo entre duas jornadas”, o significado da palavra é muito apropriado para a prática daqueles homens que cruzavam nossas matas, rios e serranias. Diz o citado Goulart que as tropas montavam acampamento sempre nas proximidades de um rio, tomando o cuidado de atravessá-lo e buscar um pequeno promontório para “arriar a mercadoria”. Tal providência tinha por objetivo evitar a surpresa de uma cheia durante a noite. Os acampamentos eram percebidos, depois que a tropa partia, pelas estacas fincadas no solo e que serviam para amarrar os animais. Assim, a margem onde estivessem as estacas indicava a direção para a qual seguira a tropa.

Acrescenta o autor que os tropeiros jamais utilizavam as estacas de quem ali estivera anteriormente, porque acreditavam que isto desencadearia algum problema sobrenatural. Conseqüentemente, um local aprazível para o descanso da tropa ficaria, depois de algum tempo, marcado pelas estacas ali deixadas. Conclusão: o local de “recreio da tropa” poderia ser identificado muito tempo depois.

Sugerimos, aos leitores interessados no tema, o artigo O Tropeirismo no Brasil, de Claudio Recco, disponível no site Historianet http://www.historianet.com.br/

Aspectos da História de Leopoldina

Muitos de nós tivemos as primeiras noções de história através de uma visão idealista. Até bem pouco tempo ensinava-se a história de um determinado lugar baseando-se na trajetória de seus heróis. No antigo sistema de ensino nós, simples ouvintes, assistíamos as aulas como se tudo aquilo fosse um fantástico romance, totalmente distante da nossa própria realidade. Não nos sentíamos como parte do processo. Éramos, simplesmente, espectadores. E espectador não pode interferir no roteiro! Assim nos formamos, ou melhor, perdemos a oportunidade de formar nossa consciência histórica. Achávamos que tudo tinha sido realizado por um semideus e que nós, simples mortais, estávamos aqui só para assistir de camarote ao filme sobre os heróis ou obedecer cegamente ao que autoridades decidiam.

Hoje, quando temos oportunidade de analisar o contexto em que os fatos se deram, deixamos de ver em todo lugar um herói ou semideus. Ao se humanizarem, os heróis passam realmente a nos ensinar alguma coisa. No mínimo nos dão a certeza de que todos nós podemos fazer alguma coisa para mudar o curso da história.

Em comunidades onde não há consciência crítica, o morador não se sente capaz de atuar positivamente. Acho que aqui em Leopoldina isto não acontece. Vocês todos sabem que são cidadãos aptos a mudar o rumo da história. Vocês vivem na certeza de que são os responsáveis por tudo o que acontece na cidade.

A história de vocês foi sempre assim: uma cidade formada por cidadãos conscientes, atuantes, que sabem o que querem e o que podem fazer.

Voltemos ao início de tudo!

Após o período áureo da mineração, a população do centro de Minas passou a buscar alternativas. E o governo da província, preocupado com o contrabando do ouro já muito escasso, tratou de criar mecanismos que evitassem a fuga de divisas. Uma das atitudes foi abrir ao povoamento a nossa região, antes tida como “áreas proibidas”. Até o finalzinho dos setecentos não era permitido ocupar nossas terras.

Até que uma diligência que passou aqui pela mata deixou claro que era muito fácil invadi-la. Depois de inúmeras discussões no alto escalão, o governador da província decidiu liberá-las ao povoamento, considerando que os habitantes serviriam de guardiões das terras e, portanto, uma barreira eficaz contra invasores desqualificados. Mas não era muito fácil convencer os chamados “homens bons”, ou seja, chefes de família com bom respaldo financeiro, a deixarem uma situação estabelecida e se aventurarem a formar fazendas em terras distantes. Para contornar o empecilho, criou-se um atrativo: quem se estabelecesse nas divisas da província ficaria isento de impostos por dez anos.

Precisamos deixar claro que, naquela época, tudo acontecia de forma bem mais lenta. Assim é que os 10 anos de isenção tributária foram necessariamente prorrogados até pouco depois da Independência do Brasil.

Necessário ainda ressaltar uma profissão muito lucrativa da época da mineração: os tropeiros. Laura de Melo e Souza, em seu livro Opulência e Miséria em Minas Gerais, lembra que a riqueza estava, de fato, nas mãos dos comerciantes. Com a extração de ouro não se enriqueceu tanto como quiseram fazer crer os antigos livros de história. Comerciantes e tropeiros sim, estes conseguiram amealhar fortunas. Não com a rapidez com que se imagina o enriquecimento de alguém que extraia uma enorme pepita do mais puro ouro. Não! Eles foram construindo um bom patrimônio aos poucos, rasgando as trilhas em busca dos fregueses de suas mercadorias, bens necessários à sobrevivência nos rincões mais longínquos.

Os tropeiros foram, então, os primeiros “homens bons” a conhecerem a nossa região. A lenda do Feijão Cru tem origem provável naqueles homens destemidos que enfrentavam tudo. E eles, os tropeiros, estiveram entre os primeiros a requisitarem Cartas de Sesmaria e se beneficiarem da isenção tributária. Alguns vieram de fato ocupar as terras recebidas. Muitos jamais pisaram o solo às margens do Feijão Cru.

Vejamos algumas imagens.

Aspectos da História de Leopoldina

Se estivéssemos estudando por algum daqueles livros antigos, na certa encontraríamos algum herói travestido de benfeitor dos índios e solucionador de todos os problemas. Provavelmente o herói seria um homem riquíssimo, cuja riqueza provinha da extração do ouro, e que por puro diletantismo resolveu gastá-la povoando as margens do Feijão Cru. E para continuar com as lendas que povoam nosso imaginário, o herói pegou uma índia a laço e com ela criou numerosa, bela e feliz família.

Talvez eu cause uma decepção em alguém. Sinto muito. Até hoje eu não encontrei nem vestígio de um herói desse tipo em nossas terras. O que eu pude apurar é que um número significativo de pessoas veio povoar a região por terem conseguido terras que já faltavam no centro de Minas.

A história que eu conheço é a seguinte:

Aspectos da História de Leopoldina

Em 1784 e 1786 foram realizadas duas diligências, comandadas pelo sargento-mor Pedro Afonso Galvão de São Martinho. Entre seus auxiliares diretos encontravam-se o coronel Manoel Rodrigues da Costa e o Alferes Joaquim José da Silva Xavier.

Provavelmente os nomes soaram familiares, não é? Claro, muitos leopoldinenses pertencem às famílias deles.

Este percurso, desenhado a partir de cartas remetidas pelo coronel Rodrigues da Costa ao governador da província, aproxima-se dos locais das primeiras sesmarias concedidas nas até então “áreas proibidas”. Lembremo-nos que, entre outras determinações, ficou estabelecido que apenas 40 “homens bons” poderiam estabelecer-se nas novas terras, com um número de escravos total limitado a 200. Mas as cartas de sesmaria não foram concedidas imediatamente e nem tudo o que foi decidido na época das diligências foi integralmente cumprido.

Para o nosso caso, importa destacar:

1813 – 4 sesmarias concedidas no território hoje pertencente a Argirita. Beneficiários: dois sobrinhos de Tiradentes e suas respectivas esposas. Domingos Gonçalves de Carvalho, sua mulher Antônia Rodrigues Chaves, Felisberto da Silva Gonçalves e a mulher deste, Ana Bernarda da Silveira.

1817 – 2 sesmarias concedidas a Fernando Afonso Correia de Lacerda e Jerônimo Pinheiro de Lacerda, citando o Feijão Cru como localização.

1818 – 2 sesmarias vizinhas ao Feijão Cru concedidas aos Coelho e diversas para a família Monteiro de Barros. Antônio Francisco Teixeira Coelho era o sogro de Bernardo José Gonçalves Montes.

1831 – Primeira contagem de habitantes do Feijão Cru.

Os beneficiados com sesmarias deveriam cumprir algumas exigências. Vejamos algumas delas.

a) Dom Manoel de Portugal e Castro, do Conselho de Sua Majestade e do da Sua Real Fazenda, Governador e Capitão Geral da Capitania de Minas Gerais.

Faço saber aos que esta minha Carta de Sesmaria virem que, atendendo ao a mim apresentado por sua petição Jerônimo Pinheiro de Lacerda, que em um córrego chamado Feijão Cru que deságua no rio da Pomba no Distrito de Santo Antonio do Porto do Ubá, Termo de Barbacena,

b) e não sendo esta em parte ou todo dela, em árias proibidas, e dentro das confrontações acima mencionadas, fazendo pião onde pertencer; com declaração porém que será obrigado dentro em um ano, que se contará da data desta, a demarcá-la judicialmente, sendo para esse efeito notificados os vizinhos com quem partir, para alegarem o que for a bem de sua justiça; e ele deverá também a povoar, e cultivar a dita meia légua de terra ou parte dela dentro em dois anos, a que não compreenderá a situação, e logradouros de algum…

Pelo menos no que se refere aos prazos, temos certeza de que não foram cumpridos. Os dois irmãos Lacerda, Jerônimo e Fernando, somente mandaram seus sobrinhos para cá uns 10 anos depois. Ainda assim, para uma atividade que não era admitida oficialmente: a venda das terras recebidas gratuitamente.

Da mesma forma o patriarca Monteiro de Barros, que segundo alguns autores recebeu 14 sesmarias, não as ocupou senão mais de 15 anos depois.

O que podemos afirmar é que a partir de 1831 os moradores do Feijão Cru já começam a ser registrados, mas ainda vinculados ao Curato de São José do Paraíba.

Nosso primeiro mapa populacional é de 1835.

População do Feijão Cru em 1838 (gráfico da população: 467 brancos, 225 forros, 602 escravos)

O que eu pude apurar é que um número significativo de pessoas veio povoar as margens do Feijão Cru por terem conseguido terras que já faltavam no centro de Minas. Alguns por terem sido beneficiados com sesmarias, muitos por terem-nas adquirido dos primeiros beneficiários, o certo é que em 1835 foram encontradas 135 moradias no território que constituía o então Curato de São Sebastião do Feijão Cru, sendo 84 delas chefiadas por “homens bons”. Nas demais 51 moradias, chefiadas por pretos livres, em 10 foram encontrados escravos. A média de escravos por habitante não chegava a 1,5%.

Num estudo ainda não concluído, observei que mais da metade das famílias era constituída de parentes até segundo grau. Eram agricultores ou tropeiros. O desenrolar da história daquelas famílias demonstra que viviam em estreito relacionamento.

Observar que a área do Curato era muito mais ampla do que o território que veio a constituir Leopoldina. Mas a nossa história foi construída pelos moradores da parte sul.

Em pouco menos de 20 anos, numa época em que as comunicações eram precárias, a população tinha já se organizado a tal ponto que foi possível requerer a emancipação do distrito. Eram, então, cerca de 4.000 moradores, a maioria vivendo em suas propriedades rurais. Quando da emancipação, várias foram as exigências para a instalação da Vila Leopoldina.

Em nossa região encontramos alguns casos em que os habitantes precisaram de mais de 3 anos para se adequarem à nova situação.

No nosso caso foi diferente.

Em apenas nove meses foram adaptadas locações para os serviços que passaram a existir.

Pergunta: houve um herói que cuidou de tudo rapidamente, que doou seu sangue e recursos para transformar o Feijão Cru em Leopoldina?

Mais uma vez eu acho que vou decepcionar algumas pessoas. Mais uma vez eu digo: sinto muito! O que eu pude apurar é que lideranças políticas surgiram naturalmente. Que personagens diversos aparecem como doadores. Que diferentes pessoas atuaram na organização da sede municipal.

Claro que alguns habitantes daquela época tinham influência política também fora dos limites da cidade, ou não seria possível uma emancipação tão rápida. Mas o que eu quero dizer é que tais lideranças nada teriam conseguido sem a intensa participação dos demais habitantes. Nenhum herói consegue convencer um proprietário a doar parte de suas terras para a municipalidade, se este morador não estiver comungando dos mesmos ideais. Volto a dizer: não houve um personagem que determinasse o que seria feito. Antes, houve um acordo entre as lideranças locais, todos trabalhando pelo crescimento do lugar que escolheram para viver.

Para corroborar essa opinião, sugiro aos interessados que observem os antigos registros de imóveis da cidade. Até o final dos oitocentos não havia propriedade particular, como hoje a entendemos, na área urbana. Todos os terrenos eram da municipalidade, cedidos para quem neles quisesse edificar, seguindo especificações votadas pela Câmara Municipal. E quem doou os terrenos para a municipalidade? Um herói, um benfeitor magnânimo? Não, meus caros. Vários foram os doadores.

Por essa época o café ainda não representava o grosso de nossa economia.

Daí em diante é que surgiram as grandes plantações.

Ao lado da ampliação das fazendas de café, a sanha desenvolvimentista presente em nossos pioneiros fê-los enxergar alternativas que beneficiaram ainda mais a nossa cidade.

Um aspecto importante é a educação. Naquela época, tinha-se no Brasil algo semelhante ao ocorrido na Roma Antiga. Ou seja: as famílias de posses contratavam preceptores que preparavam seus filhos para depois seguirem cursos em escolas das cidades maiores. Em Roma demoraram dois séculos para concluírem que era mais barato fazer doações para criação de escolas locais. Em Leopoldina as famílias se organizaram rapidamente.

O processo de contratação de professores obedecia a um roteiro básico[1]. As comunidades encaminhavam correspondência ao Inspetor Geral de Instrução Pública, indicando um nome para o qual passavam uma espécie de “atestado de bons antecedentes” e detalhando as condições geraisem dentro dos parâmetros exigidos pela inspetoria, o candidato era chamado para a realização de exames de habilitação. Se aprovado, era nomeado. Se não atendesse aos requisitos necessários, a própria Inspetoriacuidava de nomear alguém habilitado.

Já no ano da instalação, a articulação política conseguiu or primeiros professores.

Em algumas cidades vizinhas o processo demorou um pouco mais pela ausência de organização dos moradores, com vistas a criarem condições de funcionamento das “aulas”. Aqui foi diferente. Não só criaram as condições como não permitiram uma outra ocorrência comum em alguns lugares: longos períodos sem professores.

Quando a municipalidade não providenciava um local para o funcionamento das aulas, os professores públicos recebiam, junto ao salário, um abono para o aluguel da sala onde trabalhavam. Em literatura encontramos referências de utilização do abono para o aluguel da casa onde o professor residia. E normalmente o professor destacava um cômodo da casa para trabalhar, nomeando a sala de aula em homenagem ao santo de sua devoção.

Assim é que encontramos diversas referências a colégios com nomes de santos e, num primeiro momento, podemos imaginar tratar-se de escolas  particulares. Uma pesquisa mais apurada demonstra que eram salas de aula dirigidas por professores públicos.

Este é um outro quadro interessante.

Demonstra a preocupação dos habitantes em garantir a continuidade dos estudos na própria cidade. Considerando as exigências legais para a criação das “aulas superiores”, incluindo-se o número mínimo de alunos, observa-se que os leopoldinenses de então trabalhavam com afinco para o progresso local.

A escola pública não é, como erroneamente pensam alguns, uma DOAÇÃO do Estado ao povo. Não! Ela é uma conquista de um povo que se organiza e luta por seus direitos. Nós podemos nos orgulhar de nossos antepassados também nesse aspecto: eles lutaram pela melhoria das condições de vida locais em todos os aspectos. Nós não podemos dizer que “eles fizeram” ou “eles aconteceram”, como se fossem pessoas distintas de nós. Não, foram as nossas famílias que garantiram a continuidade das escolas naqueles longínquos oitocentos. Não fosse assim e as “aulas” teriam sido abolidas como aconteceu em outros locais.

Ressalte-se que, ao lado das escolas providas pelo governo provincial, também o município fez funcionar escolas, pagando professores para os distritos.

No governo de João Pinheiro da Silva foi implantada uma Reforma do Ensino Primário através do Decreto nr. 1960 de 16.12.1906. Significou, entre outras coisas, a reunião das salas de “aulas públicas” em Grupos Escolares. Segundo jornais da época, funcionavam em Leopoldina, na rua Sete de Setembro, duas salas de aula a cargo dos professores Bento Castanheira e sua esposa Maria  Brígida. Ali teria nascido o atual Grupo Escolar Ribeiro Junqueira, ou seja, a reunião das “aulas públicas” existentes na sede municipal.

E quando o poder público não atendeu à demanda, os leopoldinenses souberam criar alternativas.

1881 – Liceu Leopoldinense – Profissionais liberais residentes em Leopoldina organizaram uma escola particular que, embora não apareça entre as escolas reconhecidas pelo governo provincial, funcionou na década de 80 dos oitocentos[2].

1883 – Temos notícia de uma escola particular em Piacatuba, dirigida por Souza Machado e Symphronio Cardoso, cujos detalhes ainda não conseguimos apurar[3].

1893 – Arcádia Leopoldinense – 86 leopoldinenses criaram uma sociedade por cotas com o objetivo de prover a educação da mocidade.

1906 – Gymnasio Leopoldinense – Tem sua história bastante conhecida.

1909 – A Nova Escola – Provavelmente o embrião do Seminário, fundada pelos padres Júlio Fiorentini e Felix Poinsot.

1918 – Colégio Imaculada Conceição.

Um povo organizado como o leopoldinense, soube muito bem aproveitar outras oportunidades que surgiram.

A história da Estrada de Ferro (1871-1877), a chegada dos imigrantes para a lavoura (1882), a substituição do trabalho escravo bem antes da abolição (1884), o serviço de telefonia já em 1886, a fundação da Sociedade Portuguesa de Beneficência (1889) e o funcionamento da Hospedaria de Imigrantes (1894-1899), são exemplos da atuação brilhante de nossos antepassados em prol do desenvolvimento.

Há mais um século de história pela frente. No entanto, eu fico por aqui.

Tenho certeza de que todos vocês, leopoldinenses de nascimento ou por adoção, continuam trabalhando para que a cidade aproveite todas as oportunidades possíveis. Garanto que vocês todos trabalham em prol da comunidade. Vocês sabem que cada um é importante, que todos precisam participar. Vocês estão fazendo história!


* Apresentação promovida pela FELIZCIDADE, Organização Social Civil de Interesse Público sediada em Leopoldina, MG, tendo sido realizada no auditório do CEFET campus Leopoldina no dia 10 de dezembro de 2003.

[1] GOUVÊA, Maria Cristina Soares de. Processo de profissionalização docente na Província Mineira no período imperial. Belo Horizonte: UFMG, s.d. mono

[2] Américo Lobo Leite Pereira, Eduardo Magalhães, José de Souza Soares Filho, Martiniano Lintz e Teófilo Ribeiro aparecem entre os professores de 1881.

[3] Almanaque Laemmert, 1883, página 153 da seção Provincial.

Origem dos Povoadores de Leopoldina

Um personagem sempre recorrente na história de Minas, quiçá do Brasil, é o Tropeiro. Escolhemos a descrição de Saint-Hilaire por acreditarmos ser a mais abrangente.

Dá-se o nome de tropeiros aos homens que conduzem as caravanas de burros destinadas a empreender essas viagens e outras semelhantes. As tropas um pouco consideráveis são divididas em lotes de sete animais, e cada um é confiado à guarda de um negro ou mulato que, caminhando na retaguarda dos cargueiros de que está encarregado, os incita e dirige por meio de gritos ou por um assobio bastante brando. Costuma-se carregar cada besta com oito arrobas (cerca de 120 quilos), e para não ferí-los, iguala-se a carga com o maior cuidado. Cada caravana que chega a um rancho aí toma o seu lugar; os animais são logo descarregados; arruma-se as mercadorias com ordem; cada animal recebe sua ração de milho; levam-nos ao pasto; arranjam-se-lhes as albardas, e se desentortam os cravos destinados a ferrá-los. Enquanto isso o mais jovem da tropa vai buscar água e lenha, acende o fogo, arma em redor três bastões que se unem superiormente, amarra-os, e suspende um caldeirão na tripeça, onde põe a cozinhar o feijão preto destinado ao jantar do dia e ao almoço do seguinte. Os tropeiros das diversas caravanas se aproximam uns dos outros, põem-se a conversar, relatam suas viagens e aventuras amorosas, e, às vezes, um deles encanta o trabalho dos vizinhos tocando guitarra e cantando algumas dessas árias brasileiras que tem tanta graça e doçura. Tudo se passa com ordem; raramente discutem, e falam entre si com uma delicadeza desconhecida na Europa entre homens de classe inferior. No dia seguinte, levantam-se bem cedo; dão aos burros nova ração de milho. Deixando o rancho, saúdam os tropeiros que ainda aí ficam; fazem nova caminhada de três a quatro léguas, e chegam a outra estação pelas duas ou três horas da tarde.[1]

Auguste de Saint-Hilaire, cientista francês que viajou pelo interior do Brasil entre 1816 e 1822, deixou-nos preciosas informações sobre o Brasil do início do século XIX. Mário Guimarães Ferri, na introdução do “Segunda Viagem”, nos diz que “seus relatórios de viagens são um manancial riquíssimo de informações. … Sua obra é, com efeito, de valor perene e interessa ao botânico, ao zoólogo, ao geógrafo, ao historiador, ao etnógrafo; interessa, enfim, a todos quantos desejam conhecer algo sobre o Brasil do início do século XIX, de um Brasil que, em geral, já não mais existe.” [2]

Tropeiros na Serra dos Órgãos, por Rugendas, prancha 15 das paisagens em Viagem Pitoresca através do Brasil
Tropeiros na Serra dos Órgãos, por Rugendas, prancha 15 das paisagens em Viagem Pitoresca através do Brasil

De leitura agradabilíssima, os relatos de viagem de Saint-Hilaire nos trazem informações algumas vezes surpreendentes. Um exemplo é a forma como descreve a Inconfidência Mineira no volume dedicado à primeira viagem a Minas. Usando termos como “pretensa conspiração” ele nos indica que ao tempo de sua estada no Brasil o movimento dos mineiros não era visto com as cores negras como nos acostumamos a ler nos livros de história. Aliás, é ainda Saint-Hilaire quem escreve que o Visconde de Barbacena informou ao Vice-Rei, no Rio de Janeiro, sobre o movimento em Minas, pintando-o como “ato de rebelião mais criminoso e terrível” do que na verdade teria sido.

Na época de sua primeira viagem informa o cientista que o governo mineiro isentava por dez anos de impostos aos que se transferissem para as fronteiras da Província. Portanto, este viajante tem muito a nos dizer sobre as Minas daquele início de século, na época em que se intensificaram as migrações em demanda da região hoje conhecida como zona da mata mineira.

Um outro personagem importante para o estudo de nossa região e também mencionado por aquele viajante é o guarda-mor. Algumas vezes temos visto sucederem-se informações sobre dois ou mais personagens, contemporâneos e vivendo na mesma região, a quem um mesmo autor dá o título de Guarda-Mor das Minas e por essa razão tornam-se alvo de contestação de alguns menos estudiosos. Cargo criado em 1679, era inicialmente o administrador a quem competia, entre outras atividades, conceder licença a quem quisesse descobrir minas. Nomeado pelo Administrador Geral ou Provedor das Minas, a este substituía em algumas das inúmeras atividades que lhe eram afetas, especialmente com a intensificação das pesquisas mineirais em terras do Brasil. Ao tempo de sua primeira viagem a Minas, assim se manifestou Saint-Hilaire;

O cargo de guarda-mor geral é hereditário na família de um rico cidadão da Província de São Paulo que mandou abrir à sua custa o caminho do Rio de Janeiro a Vila Rica.

O guarda-mor geral tem o direito privativo de conceder o título de mineração; como, porém, não habita ordinariamente a Província das Minas, seu cargo de reduz a um título, e os guardas-mores substitutos preenchem suas funções. Quando o guarda-mor geral se encontra na capitania, é ele quem nomeia os substitutos; em sua ausência esse direito pertence ao governador. De poucos anos para cá multiplicaram-se extraordinariamente os guarda-mores substitutos, que, na linguagem corrente, se designam simplesmente pelo nome de guarda-mores.[3]

Esclarecemos que o Guarda-Mor Geral citado por Saint-Hilaire era Garcia Rodrigues Paes, filho de Fernão Dias Paes Leme, sobre os quais o viajante inseriu nota no rodapé do texto acima.

A Segunda Viagem de Saint-Hilaire começou a 29 de janeiro de 1822, no Rio de Janeiro. No dia 6 de fevereiro ele entrou em território mineiro. Eis parte de seu relato do dia:

Serve o Rio Preto de fronteira às capitanias do Rio de Janeiro e Minas.

À extremidade de uma ponte fica uma cidadezinha encostada à montanha, composta de uma única rua muito larga e paralela ao rio. Tem a cidade o mesmo nome do rio; depende do distrito de Ibitipoca e só conta uma igreja não colada, servida por um capelão.

As casas de Rio Preto, excetuando-se uma ou duas, são térreas, pequenas, mas possuem um jardinzinho plantado de bananeiras, cuja pitoresca folhagem contribui para o embelezamento da paisagem. [4]

Seis dias depois o cientista estava acomodado em uma granja no “Rancho de Manoel Vieira” e seu relato volta a mencionar características da paisagem. Já tendo passado pela “Serra Negra”, informa que todo o percurso é um subir e descer muito cansativo. Sobre o Rio do Peixe que atravessara “um quarto de légua” antes, diz apenas; “passamos, sobre uma ponte de madeira, o pequeno rio chamado Rio do Peixe e pelo percurso vimos várias fazendas”.

Já no relato de sua primeira viagem o cientista declarou-se impressionado com o que chamou de “misto de desordem e regularidade selvagem”, chamando a atenção sobre as montanhas que se misturam no horizonte e fazem pensar que o rio nasce na elevação posterior à que primeiro se avizinha quando, ao passar posteriormente por ela, constatou que as águas vinham de um ponto bem mais distante. Século e meio depois o grande poeta Carlos Drumond de Andrade nos brindou com suas fortes impressões das montanhas de Minas.

Mais 3 dias da segunda viagem e no dia 15 de fevereiro de 1822 o relato de Saint-Hilaire nos traz informações sobre o acidente geográfico que foi determinante na escolha do local de fixação dos antigos moradores da região – a Serra da Ibitipoca.

A Serra da Ibitipoca não é pico isolado e sim contraforte proeminente de cadeia que atravessei desde o Rio de Janeiro até aqui. Pode ter uma légua de comprimento e apresenta partes mais elevadas, outras menos, vales, penedos, picos e pequenas partes planas. As encostas são raramente muito íngremes. Os pontos altos representam, geralmente, cumes arredondados e os rochedos mostram-se bastante raros. O fundo e barrocas estão geralmente cobertos de arbustos, mas poucos capões se vêem de mato encorpado. Quase toda a montanha está coberta de pastos, sempre excelentes.[5]

No dia 16 de fevereiro de 1822 é a vez de citar a Vila de Ibitipoca que ele mal conhecera na viagem anterior e por isso julgava ser “mais insignificante”.

Fica situada numa colina e se compõe de pequena igreja e meia dúzia de casas que a rodeiam, cuja maioria está abandonada, além de algumas outras, igualmente miseráveis, construídas na encosta de outra colina. Não espanta, pois, que inutilmente haja eu procurado, ontem, nesta pobre aldeia, os gêneros mais necessários à vida. [6]

Nesta ocasião Saint-Hilaire faz comentários sobre o interior de uma casa de fazenda que é semelhante a outras que ele conhecera no Brasil. Informa que na sala existe uma única mesa e um banco e nos quartos as camas são simples armações de madeira. A parada seguinte é Santa Rita de Ibitipoca, mencionada no diário de 17 de fevereiro.

Esta aldeia, situada em agradável posição, na encosta de uma colina, não é senão uma sucursal de Ibitipoca, embora importante. Compõe-se de uma única rua, mas ali se vêem algumas bonitas lojas.[7]

No dia seguinte Saint-Hilaire escreve da Fazenda da Cachoeira, onde pousou após o percurso de 5 léguas desde Santa Rita de Ibitipoca. Esta Fazenda é ponto de análise para quantos se dediquem ao estudo dos povoadores da zona da mata mineira. Mencionada por muitos como tendo sido propriedade desta ou daquela família, acreditamos que no início do século dezenove o nome Fazenda da Cachoeira compreendia inúmeras pequenas propriedades, talvez desmembramentos de uma grande fazenda formada no século anterior. Saint-Hilaire não indica o nome do proprietário, apenas informa que estava em viagem para “buscar algodão no Araxá para levar ao Rio de Janeiro”.

Aqui trouxemos recortes de como foram vistos por Saint-Hilaire as terras onde viviam os povoadores dos Sertões do Leste. Antes de prosseguirmos, transcrevemos mais um trecho da primeira viagem.

O primeiro lugar habitado que se encontra depois do Paraibuna é Rocinha da Negra, onde se vê um rancho e uma venda construídas em um vale à margem de um regato. Pouco mais longe, passa-se diante de uma choça denominada Três Irmãos, e em breve se chega à povoação de Vargem, localizada em um amplo vale rodeado de morros. O nome Vargem, sinônimo da palavra portuguesa várzea, se aplica geralmente a essas espécies de planícies úmidas e rodeadas de elevações que são bastante comuns nas partes montanhosas do Brasil, e diferem um pouco do resto do país pela vegetação.[8]

Em nota do próprio autor ao texto acima ficamos sabendo que ele foi recebido de maneira muito cordial em Vargem e que por isso faz questão de denunciar um outro viajante estrangeiro que teria sido tão bem recebido quanto ele e que, no entanto, depois teria “vilipendiado” o hospedeiro.

Encerramos este capítulo que pretendemos seja esclarecedor quanto à anterior localização dos povoadores de São Sebastião do Feijão Cru, de Bom Jesus do Rio Pardo, de São José do Paraíba, de Madre de Deus do Angu e de Nossa Senhora da Piedade. Localidades que nasceram no alvorecer do século dezenove nas antigas “áreas proibidas” da terra mineira.

1 - SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975. p. 41

2 - SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda Viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974. p. 7

3 - Viagem pelas Províncias...(idem nota 1), p. 110

4 - Segunda Viagem...(idem nota 2), p. 24

5 - idem, p. 33

6 - idem, p. 35

7 - idem, p. 36

8 - Viagem pelas Províncias...(idem nota 1), p. 49