Foreira vende casa

Os contratos de aforamento da Fazenda Laranjeiras foram modificados desde o primeiro ano do loteamento que deu origem a Recreio. Três meses depois de assinar o contrato de aforamento, Dona Guilhermina Amélia de Medeiros, viúva de Lino Marques Dias, estava residindo em Ipiabas, Valença(RJ) onde procurou o cartório para nomear José da Cruz Navega como seu procurador para a venda do terreno de 46 metros e 20 centímetros quadrados com uma casa de morada, no Arraial Novo do Recreio. A venda foi realizada no dia 18 de abril de 1885, ficando assim registrada:

Vende a Júlio de Moraes Tavares, morador na mesma Estação Recreio, uma casa térrea coberta de telhas, localizada na Estação Recreio, que divide pela frente com a linha férrea Alto Muriahé, pela direita com uma pequena casa ocupada pela Companhia da Leopoldina, pelo lado esquerdo com terrenos da Fazenda das Laranjeiras. A dita casa edificada nas terras da Fazenda das Larangeiras, junto da Estação Recreio, cujo terreno ela outorgante fez aforamento perpétuo aos proprietários da dita Fazenda Ignacio Ferreira Brito e sua mulher Mariana Osoria de Almeida.

Assim é que Júlio de Moraes Tavares, o proprietário de um dos hotéis de Recreio, assumiu, também, o foro anual de 340 reis por metro quadrado de mais este imóvel adquirido.

Recreio, MG: Costureiras, Lavadeiras e Hotéis

Um leitor ewscreveu a respeito de nossos comentários de 22, 27 e 28 de janeiro, quando apresentamos os nomes de três mulheres foreiras de terrenos da Fazenda das Laranjeiras. Em sua opinião, as funções declaradas – costureiras e lavadeiras, seriam disfarces para a “profissão maisantiga da humanidade” segundo suas palavras. Com o respeito devido ao autor do comentário, gostaríamos de marcar nossa posição a respeito.

 Mary del Priore, em seu livro História do Amor no Brasil, esclarece que o conteúdo da obra não está relacionado às idéias e conceitos da autora, mas àqueles que vigoravam em cada época retratada. E convida “o leitor a olhar um pouco pelo retrovisor da História […] por meio dos variados documentos” (2006, p.17) que a autora menciona ao longo do livro. É o que temos tentado fazer neste blog, quando apresentamos informações pinçadas nos diversos documentos que pesquisamos. Entretanto, não podemos ir além do que ali está registrado. Seria irresponsabilidade nossa afirmar que as profissões declaradas pelas foreiras eram outras, já que não temos respaldo para isto.

 De todo modo, entendemos que o leitor faça ilações neste sentido, porque nossa maneira de pensar estrutura-se a partir das informações que vamos coletando ao longo da vida. Sabemos que outros autores publicaram referências como as que a professora Del Priore nos traz no capítulo sobre o amor no século XIX, quando comenta o estudo “A prostituição, em particular na cidade do Rio de Janeiro”, do médico Lassance Cunha.Este autor aborda as “meretrizes de sobradinho” que trabalhavam em hotéis ou nas chamadas “casas de costureiras”.Del Priore esclarece que o epíteto refere-se ao fato de serem comuns “que mulheres que tinham esse ofício, assim como tintureiras, lavadeiras e cabeleireiras, conservassem seu trabalho embora tivessem ligações passageiras” (p.198).

 Uma questão se nos apresenta: o fato de três mulheres assinarem um contrato, comprometendo-se a pagar alguns mil réis de foro anual, é garantia do tipo de profissão que elas exerciam? Podemos afirmar que lavadeiras e costureiras não teriam renda suficiente para honrar o compromisso? Ou seria um preconceito disfarçado, considerando-se que os rendimentos de outros foreiros também se inscreviam entre os tidos como parcos?

 Agradecemos ao leitor que nos enviou o comentário e esperamos ter esclarecido nossa posição a respeito do tratamento à informação que retiramos dos documentos da época. Temos tentado “olhar pelo retrovisor da História” conforme sugere Mary del Priore. Mas não podemos ultrapassar os registros a partir de interpretações que não encontrem suporte em material produzido no período analisado. Até o momento, nenhum indício encontramos sobre a presença ou atuação de profissionais do sexo durante o período de construção da Estação Recreio. Sendo assim, D. Josepha, D. Guilhermina e D. Ignez continuarão sendo, aos nossos olhos, lavadeiras e costureiras.

 Aproveitamos para informar, também, que não nos parece estranha a existência de dois hotéis no arraial que se organizava. Onde ficariam hospedados os trabalhadores da obra? É importante lembrar que estamos tratando da construção de uma ferrovia e que a Estação Recreio foi plantada no meio de uma fazenda, não nas proximidades de algum arraial já existente. Pelo que nos foi dado apurar até o momento, os operários, assim como seus superiores imediatos, foram contratados em localidades mais ou menos distantes. E, naquela época, seria impossível voltar para casa ao final da jornada diária.

Dona Guilhermina

Num terreno de 46 metros quadrados com a frente para a linha férrea da Alto-Muriahé, tendo pela direita uma casa ocupada pela Companhia da Leopoldina e pelos lados e fundos os terrenos dos outorgantes, estava a casa ocupada por Dona Guilhermina, viúva de Lino Marques Dias, lavadeira. O terreno com 6 metros e 60 centímetros por 7 metros de fundos, foi aforado pela contrapartida anual de 15.708 réis. Com este registro concluímos a análise dos documentos relativos aos terrenos que formaram o primeiro núcleo urbano de Recreio.

 

Josepha Dias

Os viajantes estrangeiros, que estiveram em Minas no século XIX, deixaram suas impressões sobre os povoados por onde passaram. Uma descrição interessante que nos faz refletir sobre a origem de nossas cidades é a de Richard Burton, que aqui esteve em 1867. Em seu livro Viagem do Rio de Janeiro ao Morro Velho, reeditado pelo Senado Federal em 2001, nas páginas 69-70 encontramos a seguinte descrição:

“A igreja de costume fica na frente da praça, a casa grande de costume fica no fundo da praça e o chafariz de costume no meio da praça; daí o ditado: ‘O chafariz, João Antônio e a matriz’, que descreve a constituição dessas localidades. Em torno da grande praça, vêem-se chácaras, utilizadas pelos fazendeiros ricos nos domingos e dias-santos; durante o resto do ano, ficam fechadas. Há meia dúzia de vendas, que não vendem nada. Como é costume no Brasil, o cemitério ocupa uma elevação bem visível, e as moradas dos mortos estão muito mais bem situadas que as dos vivos”.

Os nossos povoados tomaram esta feição por terem sido formados, na maioria dos casos, em torno da Igreja Matriz. Mas este não é o caso de Recreio que, conforme sabemos, surgiu a partir da Estação da Estrada de Ferro da Leopoldina. E foi em torno dela que os primeiro moradores se localizaram.

Na medida em que vamos registrando a ocupação daqueles pioneiros, podemos perceber que o Arraial Novo atraiu prestadores de serviços variados. Como é o caso de Josepha Dias, cuja casa avizinhava-se pela esquerda com Candido Neves, pela frente com a pequena rua fronteira à estação, pelos fundos com terrenos da Fazenda Laranjeiras e pela direita com a linha férrea da estrada Alto-Muriaé. Segundo se depreende dos registros, Dona Josepha foi autorizada a ocupar o terreno de 7 metros e 70 centímetros por 10 metros de fundos com o fim de prestar seus serviços de lavadeira numa pequena casa coberta de telhas, construída por ordem do proprietário da Fazenda. E quando o Banco do Brasil autorizou Ignacio Ferreira Brito a celebrar os contratos de aforamento, Josepha Dias assinou o seu a 9 de abril de 1885, aceitando pagar anualmente 26.180 réis.