Fixar o passado na Memória

Marc Bloch, em Apologia da História, declara que “a obra de uma sociedade que remodela, segundo suas necessidades, o solo em que vive é, todos intuem isso, um fato eminentemente histórico”.

A criação da Colônia Agrícola da Constança, em abril de 1910, é um fato histórico inquestionável. Capturá-lo do passado onde se inscreve e analisá-lo, permite navegar por outros fatos marcados na história de Leopoldina. Entretanto, parece que até 1994 ninguém se dedicara a tentar compreendê-lo. E segundo Benjamin, na Tese número 5, “o passado só se deixa fixar no momento em que é reconhecido”.

Conforme temos informado em várias oportunidades, quando concluímos o levantamento sobre batismos e casamentos em Leopoldina até 1930, procuramos literatura que nos ajudasse a compreender o que representou a Grande Imigração para Leopoldina. O percentual de estrangeiros que viveu na cidade era significativo e julgávamos que o fenômeno teria sido estudado, uma vez que provavelmente teria tido um peso significativo em todos os aspectos da vida local. Para nós, era um passado que deveria estar fixado.

Na medida em que buscávamos a literatura disponível, éramos surpreendidos pela reação das pessoas a quem procurávamos. Na Biblioteca Municipal as funcionárias olharam espantadas quando perguntamos sobre obras que tratassem do assunto. Informaram que conheciam muitos descendentes de italianos mas nunca tinham ouvido falar que algum livro tivesse sido escrito a respeito. Restou-nos pedir os antigos jornais. A ideia era descobrir alguma pista através do noticiário da época e sabíamos que o primeiro jornal de Leopoldina circulou na década de 1880. Infelizmente, porém, ninguém ali sabia que existiram outros jornais antes do periódico que sobreviveu até o final do século XX.

Com algumas informações pinçadas nos poucos exemplares antigos que encontramos na Biblioteca, decidimos procurar outros leopoldinenses conhecidos pelo interesse na história local. De decepção em decepção, concluímos que estávamos trilhando um caminho desconhecido. O jornal mencionava uma colônia agrícola mas deveria ter sido alguma coisa muito pequena e passou despercebida.

A última pessoa que procuramos naquela oportunidade foi o Mauro de Almeida Pereira, mentor para outros estudos desenvolvidos já há duas décadas. Ele sabia do levantamento feito nos livros paroquiais mas não havíamos conversado sobre a grande quantidade de imigrantes que vivia em Leopoldina no final do século anterior. Informou que não sabia da existência de estudos a respeito e indicou o Luiz Raphael como pessoa que provavelmente ajudaria.

O Luiz Raphael não era propriamente um amigo. Já nos encontráramos algumas vezes mas a conversa jamais foi ampla. Acreditávamos que era uma pessoa reservada, de fala pouca. E não foi fácil encontrá-lo. Somente numa próxima temporada em Leopoldina, e depois de lido um bom número de obras generalistas sobre o tema, conseguimos chegar ao Raphael. Bela surpresa! Além da ótima recepção, mostrou-nos um pacote de documentos que marcaria a primeira fase do projeto de pesquisas.

A Colônia Agrícola da Constança surgiu em nosso horizonte de forma muito tímida, a partir do momento em que decidimos organizar um projeto de pesquisa sobre a Imigração em Leopoldina. Já que não foi encontrada literatura a respeito, a solução seria partir do zero. Ao longo destes 15 anos, conseguimos reunir um bom número de fontes. Pode-se dizer que atualmente muitos moradores de Leopoldina já sabem que a cidade abrigou um núcleo criado para acolher imigrantes. A intenção de convidar os moradores para comemorarem o Centenário da Colônia faz parte deste processo. Se realizarem o evento, o conhecimento atingirá um maior número de pessoas e, conforme ensinou Benjamin, este passado terá sido reconhecido e estará fixado na memória local.

Reminiscências do Passado

Até há pouco tempo, nós estudávamos história como um dado fixo, determinado, irretocável. Os que não se sentiam atraídos por conhecer aquele passado, argumentavam não ter interesse em conhecer datas, feitos heróicos e acontecimentos de uma época que não lhes diria respeito. Muitos declaravam que apenas decoravam o que foi pedido para as provas do colégio.

Felizmente, hoje vigora uma outra maneira de olhar para este passado. Busca-se não mais a superfície de cada momento histórico, alimentando uma certa melancolia pelos “tempos que não voltam mais”. Agora procuramos compreender de que material foi construído este passado, se as vigas da construção eram de madeira ou ferro, como foram cozidos os tijolos ou como nasceu o formato de uma telha moldada na perna de um artífice. Atualmente, muitos declaram que é preciso compreender o passado para melhor viver o presente e construir solidamente o futuro.

Walter Benjamin, no texto Escavando e Recordando que faz parte do capítulo Imagens do Pensamento no livro Rua de Mão Única, ensina que “a memória não é um instrumento para a exploração do passado; é, antes, o meio”. Podemos aplicar instrumentos para escavar este meio – a memória. E descobriremos que o nosso hoje conserva objetos daquele passado que sequer conhecíamos.

Os psicanalistas vão pelo mesmo caminho quando nos sugerem escavar o nosso passado para descobrir momentos mal resolvidos que nos perseguem até hoje, sem que disso tenhamos clareza. Revolvendo-os, temos a possibilidade de concluí-los e prosseguir na construção de nossas vidas.

Voltando a Benjamin, numa de suas famosas Teses ele considera este movimento como uma escovação da história a contrapelo. Quando passamos o pente no sentido inverso dos pelos da história, podemos nos apropriar de reminiscências que reconfiguram o nosso passado. Daí advindo uma nova visão, uma nova imagem de um presente que nasceu naqueles tempos mais ou menos longínquos.

Dentro desta linha encontram-se os inúmeros questionamentos sobre o que seja a verdade. Existe Uma Verdade, assim em maiúsculas, única, inquestionável? Ou o que decoramos para a prova era apenas a visão de quem fixou uma imagem com o objetivo de transformá-la em verdade?

Qual é a “sua” verdade sobre as colônias agrícolas criadas no alvorecer dos novecentos? Para você, elas foram celeiro de mão de obra para os latifúndios? Foram berço de novas relações de trabalho? Os colonos foram escravos de cor de pele diferente dos anteriores? Foram artífices de uma nova ordem social?

Nós acreditamos que o passado não é um objeto isolado, fixo, imutável. Cada momento do vivido pode ser aproveitado como argamassa do porvir. Escovar a contrapelo a Colônia Agrícola da Constança nos permite vislumbrar os alicerces de uma construção social na Leopoldina que recebemos das mãos de milhares de homens e mulheres que nos antecederam. E assim como cada um representou seu papel, no exercício de reconhecê-los nós nos preparamos para nossa própria atuação, sedimentando o futuro que queremos ter.

Analisar as Fontes

“Todo historiador deve ler os documentos que lhe caem nas mãos, amarrado ao mastro da mais absoluta desconfiança.”

Com estas palavras, Plínio José Freire Gomes chama a atenção do estudioso para a necessidade de avaliar as condições em que foram produzidas as fontes utilizadas numa pesquisa. Embora o artigo se refira a investigações sobre a inquisição, sob o título Brincando com o Fogo: o acervo do Santo Ofício como fonte (só) para Historiadores o autor alerta para situações que podem ocorrer em muitas outras circunstâncias. E conclui afirmando que é uma tarefa delicada porque a documentação do Santo Ofício traz em si uma carga muito negativa.

No sentido inverso, um levantamento feito nos jornais de Leopoldina da época em que foi criada a Colônia Agrícola da Constança apresenta uma aura romântica em torno de alguns imigrantes que viviam na cidade. Seja na coluna propriamente social, seja no noticiário, a profusão de adjetivos forma uma visão muito diferente do que transparece nas memórias das famílias de imigrantes. Em um dos casos analisados, o articulista transformou um camponês quase em estadista.

Acreditamos que não é necessário usar de subterfúgios para tratar dos nossos imigrantes. A maioria era gente simples que aceitou o contrato sonhando com a aquisição de terra, situação inviável na pátria natal. Aqui trabalharam com afinco, contribuindo para a expansão da agricultura de subsistência e realizando um bom número de diferentes atividades necessárias ao funcionamento da sociedade. Por isto nós os reverenciamos!